A vida tem a cor que você pinta. (Mário Bonatti)

terça-feira, 17 de maio de 2011

"O fato de que todo amor possua sua profunda tragédia não é motivo para não mais amar!" Hermann Hesse

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nada como terminar a segunda-feira relendo, cuidadosamente, um livro de Clarice Lispector e se deparar com um trecho tão bonito quanto este. Embriagai-vos com estas palavras...

“Algumas noites depois estava dormindo. E embora parecesse contradição, suavemente de repente o prazer de estar dormindo a acordara num macio sobressalto. Ficou deitada algum tempo e ainda sentia o gosto no corpo todo daquela zona rural onde subsolarmente ela espalhara das raízes os tentáculos de algum sonho. Certamente, aliás, fora um sonho bom que a despertara.

Levantou-se e foi beber um copo d’água, sem querer acender as luzes, procurando orientar-se na escuridão que não era total por causa da luz forte da casa vizinha. Eram apenas onze horas da noite. Como fora para a cama às dez, dormira apenas uma hora, acordada pelo prazer de dormir.

Foi beber devagar o copo d’água no terraço. Sentiu pelo cheiro do ar e pela inquietação dos ramos das árvores que ia chover dali a pouco. Não se via a lua. O ar estava abafado, o cheiro de jasmim vinha forte do jasmineiro da vizinha. Lóri ficou de pé no terraço, um pouco sufocada pelo perfume intenso. Através da embriaguez do jasmim, por um instante uma revelação lhe veio, sob a forma de um sentimento – e no instante seguinte ela esquecera o que soubera através da revelação. Era como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada pelo intolerável saber.

Ali em pé na semi-escuridão do terraço, de repente mais suave, veio-lhe outra revelação que durou pois era o resultado intuitivo de coisas que ela pensava antes racionalmente. O que lhe veio foi a levemente assustadora certeza de que os nossos sentimentos e pensamentos são tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte. E ela não compreendeu o que queria dizer com isso. Ela o deixou ficar, ao pensamento, porque sabia que ele encobria outro, mais profundo e mais compreensível. Simplesmente, com o copo de água na mão, descobria que pensar não lhe era natural. Depois refletiu um pouco, com a cabeça inclinada para um lado, que não tinha um dia-a-dia. Era uma vida-a-vida. E que a vida era sobrenatural.

Naquela hora da noite conhecia esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo apenas o desamparo de estar viva. De forte que se amparava no próprio desamparo. De estar viva – sentiu ela – teria de agora em diante, que fazer o seu motivo e tema. Com curiosidade meiga envolvida pelo cheiro de jasmim, atenta à fome de existir, e atenta à própria atenção, parecia estar comendo delicadamente viva o que era muito seu. A fome de viver, meu Deus. Até que ponto ela ia na miséria da necessidade: trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estava viva.

Até que teve fome mesmo, foi buscar uma pêra e voltou ao terraço. Ela estava comendo. Sua alma humana era a única forma possível de não chocar desastrosamente com a sua organização física, tão máquina perfeita esta era. Sua alma humana era também o único modo como lhe era dado aceitar sem desatino a alma geral do mundo. A engrenagem falhasse por meia fração de segundo, ela desmancharia em nada.

Apesar da ameaça de chuva iminente e da angústia que o jasmim sufocante já lhe estava dando, descobria, descobria. E não chovia, não chovia. Mas a hora mais escura precedeu aquela coisa que ela não queria sequer tentar definir. Esta coisa era uma luz dentro dela, e a essa chamariam de alegria, alegria mansa.

Ficou um pouco desnorteada como se um coração lhe tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável, do que era antes um órgão banhado pela escuridão da dor.

Porque ela estava sentindo a grande dor. Nessa dor havia porém o contrário de um entorpecimento: era um modo mais leve e mais silencioso de existir. Quem sou eu? perguntou-se em grande perigo. E o cheiro do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume.

Viu que, igual ao balançar inquieto das árvores da casa vizinha, também ela estava dócil, inquieta. Organizara-se para se consolar da angústia e da dor. Mas como era que se consolaria da mistura de simples e tranquila alegria com a angústia? Ela não estava habituada a prescindir do consolo.

Então começou finalmente a chover.

Antes uma chuva rala, depois tão densa que fazia barulho em todos os telhados.

Já sei, pensou de repente. Soube que estava procurando na chuva uma alegria tão grande que se tornasse aguda, e que a pusesse em contato com uma agudez que se parecia com a agudez da dor. Mas fora inútil a procura. Estava à porta do terraço e só acontecia isto: ela via a chuva e a chuva caía de acordo com ela. Ela e a chuva estavam ocupadas em fluir com violência.

Quanto duraria esse seu estado? Percebeu que com essa pergunta estava apalpando seu pulso para sentir onde estaria o latejar dolorido de antes.

E viu que não havia o latejar da dor como antigamente. Apenas isso: chovia fortemente e ela estava vendo a chuva e molhando-se toda.

Que simplicidade.

Nunca imaginara que uma vez o mundo e ela chegassem a esse ponto de trigo maduro. A chuva e Lóri estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva. E ela, Lóri, não estava agradecendo nada. Não tivesse ela, logo depois de nascer tomado por acaso e forçosamente o caminho que tomara – qual? – e teria sido sempre o que realmente estava sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à Natureza. A chuva também não agradecia nada. Sem gratidão ou ingratidão, Lóri era uma mulher , era uma pessoa, era uma atenção, era um corpo habitado olhando a chuva grossa cair. Assim como a chuva não era grata por não ser dura como uma pedra: ela era a chuva. Talvez fosse isso, porém exatamente isso: viva. E apesar de apenas viva era uma alegria mansa, de cavalo que come na mão da gente. Lóri estava mansamente feliz.

E de súbito, mas sem sobressalto, sentiu a vontade extrema de dar essa noite tão secreta a alguém. E esse alguém era Ulisses. Seu coração começou a bater forte, e ela se sentiu pálida pois todo o sangue, sentiu, descera-lhe do rosto, tudo porque sentiu tão repentinamente o desejo de Ulisses e o seu próprio desejo. Permaneceu um instante em pé, por um instante desequilibrada. Logo seu coração bateu ainda mais depressa e alto porque ela compreendeu que não adiaria mais, seria agora de noite.

Pegou na bolsa o endereço dele escrito no guardanapo, vestiu a capa de chuva sobre a camisola curta, e no bolso da capa levou algum dinheiro. E sem pintura nenhuma no rosto, com o resto dos cabelos curtos caindo sobre a testa e a nuca, saiu para tomar um táxi. Fora tudo tão rápido e intenso que não se lembrara sequer de tirar a camisola, nem de se pintar.”

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1994.

=)